Tipo e Atributos de
Marte
Marte (Ares), deus sangüinário e
detestado pelos imortais, nunca teve grande importância entre as populações
helênicas. Em numerosas localidades, parece até haver sido inteiramente
desconhecido, e se o seu culto conservou na Lacônia importância maior que alhures,
deve-se à rudeza dos habitantes de tal país. Foi somente entre os romanos que
Marte adquiriu importância verdadeira e permanente; o tipo de Palas
conformava-se muito mais ao gênio grego. Com efeito, Palas é a inteligência guerreira, ao passo que Marte nada
mais é do que a personificação da carnificina. Ávido de matar, pouco lhe
importa saber de que lado está a justiça e cuida apenas de tornar mais furiosa
a luta.
O deus da guerra e da violência
aparece-nos sempre em atitude de repouso. Tem, por vezes, numa das mãos a
Vitória, como Júpiter ou Minerva.
Vemo-lo com tal aspecto numa famosa estátua da Villa Albani. Uma linda pedra
gravada mostra Marte segurando com uma das mãos a Vitória e com a outra a
oliveira, símbolo da paz proporcionada pela vitória.
A maioria das vezes usa um capacete e
empunha uma lança ou gládio. Aparece, assim, em várias medalhas, mas as
estátuas que o representam isoladamente não são demasiadamente comuns entre os
gregos. Entretanto, a bela estátua do Louvre, conhecida pelo nome de Aquiles
Borghese passa hoje por ser um Marte. Explica-se o elo que usa num dos pés pelo
hábito de certos povos, e notadamente os lacedemônios, de agrilhoarem o deus da
guerra.
Parece ter sido o escultor Alcameno de
Atenas quem fixou o tipo de Marte, tal qual surge habitualmente nos monumentos
artísticos. Os atributos habituais do deus são o lobo, o escudo e a lança com
alguns troféus. Uma medalha cunhada na época de Seotímio Severo nos mostra
Marte com uma lança, um escudo e uma escada para o ataque. Sob tal aspecto,
Marte recebe o epíteto de Teichosipletes (que sacode as muralhas). Em geral,
porém, não tem real importância na arte a não ser pela sua ligação com Vênus.
Num célebre quadro da galeria de
Florença, Rubens representou Marte, que Vênus e Cupido se
esforçam inutilmente por reter, e que, de gládio empunhado, segue a Discórdia
precedida do Temor e do Espanto. As Artes chorosas, a Música, a Arquitetura e a
Pintura, são pisadas pelo feroz deus: o comércio está destruído e os campos
prestes a ser incendiados. Noutro quadro do mesmo pintor, vemos, ao contrário,
Marte repelido por Minerva, enquanto a Terra oferece o seio fecundo do qual o
leite jorra ao lado de um grupo de crianças que acorrem a ver uma cornucópia
que lhes oferece Pã, o deus da agricultura.
Marte na Guerra dos
Gigantes
Claudiano descreveu o papel de Marte na
guerra dos Gigantes. "O deus impele os seus furiosos corcéis contra a
horda formidável e, imprimindo ao gládio um movimento irresistível, o
monstruoso Peloro é atingido no ponto em que, por um estranho acoplamento, duas
serpentes se lhe unem ao corpo que elas sustentam. Marte vendo-o tombar, faz
passar as rodas do carro sobre o inimigo vencido, e o sangue que jorra desse
corpo enorme avermelha as montanhas vizinhas.
"Entretanto, Peloro tinha um
irmão, o gigante Mimas, que, ocupado em lutar noutra região, viu Peloro cair.
Mimas pensa exclusivamente na vingança e, curvando-se para o mar, quer dele
arrancar a ilha de Lemnos para atirá-la contra o deus. Marte evita o choque e
com um golpe de lança fura a cabeça de Mimas, cujo cérebro se esparrama à
direita e à esquerda.
Marte foi menos feliz com outros
Gigantes. Fora aprisionado por Oto e Efialtes que o haviam mantido agrilhoado
durante treze meses. O escultor Flaxman nos mostra o deus da guerra em posição
humilhante. Oto e Efialtes tinham tentado escalar o céu colocando o monte Ossa
sobre o Olimpo e o Pélion sobre o Ossa. Diana, para evitar-lhes a perseguição,
viu-se obrigada a transformar-se em corça, e estando a fugir precipitadamente,
os dois irmãos Gigantes, que vinham um em cada direção, atiraram contra ela, ao
mesmo tempo, os seus dardos, e dessa maneira mataram um ao outro. (Apolodoro).
Vênus e Marte
A aliança entre a guerra e o amor,
entre a força e a beleza, é uma idéia inteiramente conforme ao espírito grego.
Apesar de brutalíssimo, não pôde Marte resistir a Vênus que o subjuga e domina
com um sinal: da união de Marte e Vênus nasceu Harmonia. Vários monumentos
antigos, notadamente o famoso grupo do museu de Florença e o do museu
Capitolino, reproduzem essa ligação que também se vê em pedras gravadas.
Os romanos gostavam de fazer-se
representar com suas mulheres, e usando os atributos de Marte e Vênus; era uma
alusão à coragem do homem e à beleza da mulher. Aliás, os romanos consideravam
Marte e Vênus autores da sua raça, e durante a época imperial, dava-se
freqüentemente aos deuses a feição dos imperadores. Assim é que temos no Louvre
um grupo, cuja personagem masculina parece ser Adriano ou Marco Aurélio, e que
representa Marte ao lado de Vênus. Mas a imperatriz está vestida. Vários
arqueólogos pensam que a Vênus de Milo estava ao lado da estátua de Marte. A
arte dos últimos séculos ligou igualmente as duas divindades e, num encantador
quadro do Louvre, le Poussin nos mostra o deus da guerra,
esquecido dos seus atributos e do seu papel, sorrindo para a deusa, enquanto os
cupidos brincam tranqüilamente com as armas, no meio de risonha paisagem.
Marte Ferido por
Diomedes
Marte, na guerra de Tróia acirrado
inimigo dos gregos, foi ferido por Diomedes e deu um grito semelhante ao clamor
de dez mil combatentes numa furiosa batalha. Subiu ao Olimpo para dar vazão às
suas queixas contra o herói grego e sobretudo contra Minerva que
dirigira o golpe. "Tens por tua filha, diz a Júpiter, uma indigna
fraqueza, porque tu sozinho foste quem gerou tão funesta divindade. Ei-la agora
que excita contra os deuses o insensato furor de Diomedes. Ousado! Em primeiro
lugar feriu Vênus na mão, depois atirou-se a mim, e se os meus pés velozes não
me houvessem subtraído à sua cólera, lá teria ficado eu estendido sem força aos
golpes do ferro."
Júpiter acolhe mal as queixas de Marte:
"Divindade inconstante, exclama, cessa de importunar-me com os teus
lamentos! De todos os habitantes do Olimpo, tu és o que eu mais odeio, pois só
amas a discórdia, a guerra, a carnificina. Tens, sem dúvida, o intratável
caráter de tua mãe Juno, que as minhas ordens soberanas mal conseguem domar. Os
males que suportas hoje são o fruto dos seus conselhos. Mas não quero que
sofras por mais tempo, visto que sou teu pai." O rei dos deuses manda,
então, que se cure o filho e um bálsamo salutar lhe acalma as dores, porque os
deuses não podem morrer.
Um interessante quadro da mocidade de
Davi, que obteve o segundo prêmio em 1771, mostra Diomedes no momento em que
acaba de lançar contra Marte o dardo dirigido por Minerva. Marte, ferido, está
caído. O quadrinho é valioso, porque nos dá a conhecer Davi numa época em que o
jovem artista não pensava absolutamente na reforma que, posteriormente,
introduziu na pintura, e em que todo o seu talento estava impregnado do estilo
dominante então na escola francesa.
Filomela e Progne
O caráter feroz das lendas concernentes
a Marte mais ainda se exagera, quando elas se aplicam a seus filhos. Tivera ele
de uma ninfa um filho chamado Tereu, rei da Trácia, que desposou Progne, filha
do rei de Atenas Pandião. Tinha este outra filha chamada Filomela. Progne
exprimiu ao marido o desejo de rever a irmã da qual se achava separada havia
cinco anos. Tereu foi, então, a Atenas procurar Filomela, mas no caminho abusou
dela, e, após lhe arrancar a língua para obrigá-la ao silêncio, encerrou-a numa
torre. Disse, em seguida, a Progne que sua irmã morrera; mas Filomela, do fundo
da masmorra, descobriu um modo de mandar à irmã, num pedaço de tela, a narração
das suas aventuras.
Progne, com o auxílio das festas de Baco,
conseguiu libertar Filomela, e ocultou-a num canto do palácio. Juntas, meditam
clamorosa vingança. Tereu tinha um filho muito moço, chamado Ítis; chamam-no,
matam-no, e cozem-lhe os membros que, de noite, Progne oferece ao marido. Tereu
pergunta porque o filho não está à mesa, mas só quando termina o repasto é que
Filomela, saindo subitamente do esconderijo, lhe anuncia que comeu a carne do
próprio filho e, ao mesmo tempo, para que ele não duvide do que lhe afirma, lhe
atira ao rosto a cabeça do infeliz rapaz. Tereu, não se contendo, quer
levantar-se para estrangular as duas irmãs, mas os deuses, desejosos de pôr
cobro a tão horrível família, metamorfoseiam Progne em andorinha,
Filomela em rouxinol, Ítis em pintassilgo e Tereu
em pomba. A bárbara história ministrou a Rubens tema para um quadro
que está na Espanha; vemos Progne e Filomela mostrando a Tereu a cabeça do
filho, cuja carne ele acaba de comer.
Os Sacerdotes Sálios
O culto de Marte tinha grande
importância em Roma. Era exercido pelos sacerdotes sálios, instituídos por Numa
para guardarem os ancilos. Os ancilos tinham sido feitos em Roma sobre o modelo
de um escudo caído do céu, durante uma peste que dizimava a cidade, e eram
considerados o palácio romano. Durante certas festas os sacerdotes sálios
percorriam a cidade levando a passeio os ancilos cuja forma nos foi conservada
num denário de prata cunhado sob Augusto. O barrete que está no meio é o ápex
do flâmine.
Belona
A companheira habitual de Marte é
Belona (Enio), personificação da chacina. Tinha ela por missão especial
conduzir o carro do deus da guerra e excitar-lhe os cavalos com a ponta de uma
lança. As figuras antigas de Belona são extremamente raras. Plínio narra que
Apeles pintara um quadro representando Belona, de mãos atadas atrás das costas
e presa ao carro triunfante de Alexandre: o quadro fora levado para Roma como
troféu.
A Discórdia
Nos poetas, Belona é escoltada pelo
Espanto, pela Fuga e pela Discórdia, divindades às quais a arte não destinou
tipo particular. Contudo, tem a Discórdia grande importância na mitologia, pois
foi ela que causou a ruína de Tróia, atirando a maça de ouro entre as deusas.
Homero faz da Discórdia o retrato seguinte: "Deusa que, fraca no
nascimento, cresce e em breve oculta a cabeça no céu, enquanto os pés lhe
permanecem na Terra; é ela que, atravessando a multidão dos guerreiros, derrama
em todos os corações o ódio fatal, precursor da carnificina. Faz retumbar a
voz, dá gritos alucinantes, terríveis, e lança no coração de todos os
guerreiros impressionante coragem. Apraz-se em ouvir os gemidos do soldado que
morre e, quando todos os deuses se retiram do combate, é a única que permanece
no campo de batalha para dar, como pasto aos olhos, o espetáculo dos mortos e
dos moribundos."
Etéoclo e Polinice
A Discórdia preside às disputas que
dividem os povos e as famílias. A Fábula de Etéoclo e Polinice nos mostra a sua
ação. Os dois filhos de Édipo haviam
expulsado o pai, que cobriu de maldições e lhes predisse que se matariam um ao
outro. Os dois irmãos, temendo que a maldição paterna fosse ratificada pelos
deuses, se continuassem a viver juntos, decidiram, de comum acordo, que
Polinice seria o primeiro em se exilar voluntariamente da pátria, que deixaria
o cetro a Etéoclo, e voltaria depois, para que cada um pudesse reinar,
alternadamente, um ano. Mas Etéoclo, uma vez no trono, recusou-se a descer e
proibiu ao irmão o regresso à pátria. Polinice, então, tratou de procurar
aliados para a defesa dos seus direitos.
Anfiaraus
Adrasto, rei de Argos, acolheu
Polinice, e prometeu-lhe repô-lo no trono de Tebas. Buscou, por conseguinte,
aliados para empreender a luta, mas um poderoso chefe, Anfiaraus, tratou de
dissuadir ambos, por ser adivinho e por lhe haver a ciência mostrado que a
guerra seria fatal aos que a começassem, e que todos morreriam, com exceção
apenas de Adrasto. Anfiaraus tinha uma mulher chamada Erifila, e por um velho
juramento que fizera a Adrasto, comprometera-se, no caso de divergências entre
eles, a submeter-se inteiramente à decisão de Erifila. Quando Polinice soube
disso, empregou um ardil para forçar Anfiaraus a combater. Tinha em suas mãos o
famoso colar que Vênus dera, noutros tempos, à Harmonia, no dia de suas núpcias
com Cadmo. Deu-o de presente a Erifila, que, assim, se deixou corromper, e
Anfiaraus, apesar da certeza que tinha de mau êxito do negócio, foi obrigado a
combater com Adrasto e Polinice.
Um poderoso exército se reuniu em breve
para marchar contra Tebas. Comandavam-no sete chefes: Adrasto, Polinice,
Capaneu, Partenopeu, Anfiaraus, Hipomedonte e Tideu. Juraram todos que iriam
combater sob as suas ordens.
Arquemoro
Durante o caminho, faltou-lhes água, e
o exército começou a sofrer devoradora sede. Encontraram, então, uma criatura
que tinha um filhinho, e perguntaram-lhe se não havia no país uma fonte.
Chamava-se o menino Ofeltes e era filho do rei Neméia. A mulher era Hipsipila,
outrora rainha de Lemnos, mas que, tendo sido vendida posteriormente como
escrava, estava ao serviço do rei de Neméia, que lhe confiara a tutela do
filho. Hipsipila pousou a criança sobre umas folhas de aipo e conduziu os sete
chefes a uma fonte das proximidades. Durante a curta ausência, porém, uma serpente
envolveu nas espiras a criança abandonada e sufocou-a. Ao regressarem, os
chefes apressaram-se em matar a serpente e tomaram aos seus cuidados Hipsipila,
para livrá-la da ira do rei de Neméia. Deram à criança o nome de Arquemoro,
realizaram-lhe um magnífico funeral e instituíram em sua honra os jogos de
Neméia, nos quais os vencedores se cobriam de luto e se coroavam de aipo.
Combate dos Dois
Irmãos
Anfiaraus viu naquilo péssimo
presságio. Mas era preciso partir, e assim chegaram todos a Tebas. Uma terrível
batalha se feriu sob os muros da cidade, que Etéoclo não pretendia entregar.
Como o sangue escorresse por toda parte, Etéoclo subiu a uma torre, mandou que
se fizesse silêncio, e disse aos exércitos: "Generais da Grécia,
chefes dos argivos que a guerra atrai para estes páramos, e vós, povo de Cadmo,
não arrisqueis mais a vida nem por Polinice, nem por mim. Quero eu, sozinho,
enfrentar o perigo, e desejo lutar contra meu irmão, de homem para homem. Se o
matar, governarei sozinho; se for vencido, entregar-lhe-ei a cidade. Vós,
portanto, abandonai o combate, voltai para Argos, não venhais mais aqui perder
a vida; o povo tebano não deseja outras mortes." (Eurípedes).
Feriu-se, então, entre os dois irmãos
um combate singular no qual foram mortos ambos. Os deuses haviam ouvido as
derradeiras imprecações de Édipo. Esse combate figura num grandíssimo número de
baixos-relevos antigos.
O exército sitiante foi vencido, e todos
os chefes pereceram com exceção de Adrasto, que deveu a vida à rapidez do seu
cavalo. Assim, realizou-se a profecia de Anfiaraus.
Funerais de Etéoclo e
de Polinice
O senado de Tebas, que tomara partido
pelos sitiados, decidiu que Etéoclo seria sepultado com honra, mas que seu
irmão Polinice seria, em virtude da traição, deixado sem sepultura, para que o
devorassem os cães e os abutres. Antígona quis enterrar o irmão, apesar das
ordens dadas e, decidida a desobedecer, disse aos chefes do povo: "Pois
bem! Eis o que respondo eu aos chefes dos de Cadmos. Se não há quem queira,
comigo, enterrá-lo, hei de conseguir sozinha, e assumirei toda a
responsabilidade. Não vejo vergonha nenhuma em sepultar meu irmão, nem que para
isso devesse, rebelada, ir de encontro aos desejos da cidade. É coisa grave
termos caído das mesmas entranhas, termos tido a mesma mãe, uma infeliz, o
mesmo pai, outro infeliz. Sim, deliberadamente, hei de continuar irmã deste
morto. Ah, não se fartarão da sua carne os lobos de ventre faminto. Hei de
sozinha, apesar de mulher, incumbir-me de remover a terra e preparar uma cova.
Trarei o pó nas dobras desta tela, e eu própria a recobrirei com ele o cadáver.
Ninguém objetará! Terei essa coragem, e, o que é mais, terei ao meu lado todos
os recursos de uma alma que quer conseguir." (Ésquilo).
Pausânias, na narração das suas
viagens, diz que viu o túmulo dos filhos de Édipo. "Não assisti aos
sacrifícios que ali se realizam, mas pessoas dignas de fé me asseguraram que
nas ocasiões em que se assam as vítimas imoladas aos dois irmãos
irreconciliáveis, a chama e a fumaça se dividem visivelmente por eles."
Creonte, rei de Tebas, sabendo que, não
obstante a proibição, Antígona sepultara o irmão, pergunta-lhe se conhecia o
decreto. A jovem não nega: "Não pensei, responde, que as leis dos mortais
tivessem bastante força para superar as leis não escritas, obra imutável dos
deuses. Para mim, o traspasse não tem nada de doloroso; mas se tivesse deixado
sem sepultura o filho de minha mãe, teria sido infeliz; quanto à morte que me
aguarda, em nada me assusta." Creonte, conformando-se à lei, ordenou a
morte de Antígona e as suas ordens foram executadas; ao mesmo tempo, porém,
soube da morte de seu filho único Hemon, que amava Antígona, e que se ferira
mortalmente. Sua mulher morreu também ao saber da morte do filho, e Creonte
ficou sozinho com toda a amargura. Assim terminou a família de Laio.
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